Processo n.o 748/2007 Data do acórd.o: 2008-02-28
(Recurso civil)
Assuntos:
– art.o 854.o, n.o 1, do Código Civil de Macau
– contrato de remiss.o de dívida
– art.o 399.o, n.o 1, do Código Civil de Macau
– limita..o da liberdade contratual
– art.o 6.o do Decreto-Lei n.o 24/89/M, de 3 de Abril
– Regime Jurídico das Rela..es de Trabalho de Macau
– princípio do favor laboratoris
– art.o 60.o do Decreto-Lei n.o 40/95/M, de 14 de Agosto
S U M á R I O
1. O Código Civil de Macau, no n.° 1 do seu art.° 854.°, disp.e que
<<O credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor>>.
2. Entretanto, segundo o art.o 399.o, n.o 1, deste Código, a cria..o do
contrato n.o implica que o mesmo possa vir a produzir necessariamente os
efeitos pretendidos pelos respectivos outorgantes, visto que tudo depende
da existência, ou n.o, de outras disposi..es legais obrigatórias que
restrinjam ou limitam a liberdade contratual.
3. Estando o presente processo sob a al.ada do Direito do Trabalho,
há que aplicar o Regime Jurídico das Rela..es de Trabalho de Macau,
consagrado no Decreto-Lei n.° 24/89/M, de 3 de Abril.
4. O art.° 6.° deste Decreto-Lei determina que <<S.o, em princípio,
admitidos todos os acordos ou conven..es estabelecidos entre os empregadores e
trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos ainda que
disponham de modo diferente do estabelecido na presente lei, desde que da sua
aplica..o n.o resultem condi..es de trabalho menos favoráveis para os
trabalhadores do que as que resultariam da aplica..o da lei>>.
5. Sendo certo que as “condi..es de trabalho” de que se fala nesta
norma devem ser entendidas, conforme o conceito definido na alínea d) do
art.° 2.° do mesmo Decreto-Lei, como referentes a <<todo e qualquer direito,
dever ou circunstancia, relacionados com a conduta e actua..o dos empregadores e
dos trabalhadores, nas respectivas rela..es de trabalho, ou nos locais onde o
trabalho é prestado>>.
6. Assim, estando o montante concreto do “prémio de servi.o” ent.o
declarado pelo Autor como recebido da Ré muito aquém da soma
indemnizatória considerada devida e reclamada na peti..o inicial, o
Tribunal a quo, independentemente da procedência ou n.o do pedido do
Autor, n.o deveria ter desconsiderado a norma expressa do art.° 6.° do dito
Decreto-Lei, nem o pensamento legislativo ao mesmo subjacente e ligado
às preocupa..es de proteger os interesses da parte trabalhadora (cfr. os
canones de hermenêutica jurídica plasmados no n.° 1 do art.° 8.° do
Código Civil), n.o devendo, pois, ter julgado que a acima referida
declara..o do Autor era prova do já pagamento pela Ré das suas dívidas
para com o Autor, mesmo que essa declara..o tivesse sido emitida após a
cessa..o da rela..o de trabalho entre o Autor e a Ré.
7. Aliás, norma jurídica semelhante à do art.° 6.° do Decreto-Lei n.°
24/89/M, pode ser encontrada nas seguintes disposi..es do art.° 60.° do
Decreto-Lei n.° 40/95/M, de 14 de Agosto, definidor do regime aplicável à
repara..o dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doen.as
profissionais, também em prol da protec..o dos interesses da parte
trabalhadora:
<<1. é nula a conven..o contrária aos direitos ou às garantias conferidas no
presente diploma ou com eles incompatível.
2. S.o igualmente nulos os actos e contratos que visem a renúncia aos direitos
estabelecidos no presente diploma.>>
8. Por outras palavras, como o contrato de remiss.o de dívida em
quest.o nos presentes autos violou o princípio do “favor laboratoris”
também consagrado obrigatoriamente no art.° 6.° do Decreto-Lei n.°
24/89/M, todos os eventuais créditos laborais legais do Autor sobre a Ré
n.o podem ficar extintos por efeito desse contrato.
9. Na verdade, este princípio do favor laboratoris, como um dos
derivados do princípio da protec..o do trabalhador informador do Direito do
Trabalho, para além de orientar o legislador na feitura das normas juslaborais
(sendo exemplo paradigmático disto o próprio disposto no art.o 5.o, n.o 1, e no
art.o 6.o do Decreto-Lei n.o 24/89/M, de 3 de Abril), deve ser tido pelo menos
também como farol de interpreta..o da lei laboral, sob o qual o intérprete-aplicador do direito deve escolher, na dúvida, o sentido ou a solu..o
que mais favorável se mostre aos trabalhadores no caso considerado, em
virtude do objectivo de protec..o do trabalhador que o Direito do Trabalho
visa prosseguir.
O primeiro juiz-adjunto,
Chan Kuong Seng
Processo n.o 748/2007
(Recurso civil)
Autor: A
Ré: Sociedade de Turismo e Divers.es de Macau, S.A.R.L.
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INST.NCIA DA
REGI.O ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATóRIO
No dia 18 de Setembro de 2006, A apresentou peti..o ao Tribunal
Judicial de Base, pedindo, em ac..o declarativa ordinária, a condena..o da
sua ex-empregadora Sociedade de Turismo e Divers.es de Macau,
S.A.R.L., no pagamento de MOP$1.132.239,00, como indemniza..o
pecuniária dos créditos laborais por ele tidos como existentes ao abrigo da
legisla..o laboral de Macau (cfr. o teor da peti..o a fls. 2 a 12 dos
presentes autos correspondentes).
Citada, a Ré veio apresentar contesta..o para se opor à pretens.o do
Autor mediante invoca..o de diversos motivos, de entre os quais se
salientando o argumento de que todas as obriga..es ora imputadas pelo
Autor, a existirem, já teriam sido extintas por efeito de uma declara..o
subscrita pelo Autor nesse sentido em 18 de Julho de 2003 e já por ela
aceite logo no próprio dia (cfr. o teor da contesta..o de fls. 35 a 84 dos
autos), excep..o essa cujo conhecimento foi entretanto relegado para final,
conforme o determinado no despacho saneador.
Ulteriormente, foi proferida senten.a final pelo Mm.° Juiz titular do
processo em primeira instancia, julgando-se procedente a dita excep..o
peremptória com consequente absolvi..o da Ré do pedido, por concluída
já extin..o, por for.a do pagamento, dos créditos reclamados na peti..o
inicial (cfr. a senten.a de fls. 241 a 246 dos autos).
Inconformado, veio o Autor recorrer para esta Segunda Instancia para
rogar a invalida..o dessa decis.o, nos termos constantes da sua alega..o
de fls. 252 a 266, que se d.o por aqui reproduzidos para todos os efeitos
legais.
Ao recurso respondeu a Ré no sentido de improcedência do mesmo,
nos termos vertidos na sua contra alega..o de fls. 273 a 283, que também
se d.o por aqui reproduzidos para todos os efeitos legais.
Subido o recurso, feito o exame preliminar e corridos os vistos legais,
foi apresentado pelo Mm.o Juiz Relator a quem o processo ficou
distribuído o douto Projecto de Acórd.o à aprecia..o do presente Tribunal
Colectivo ad quem, sugerindo-se que se julgasse improcedente o recurso.
Entretanto, como o Mm.o Relator acabou por sair vencido da vota..o
sobre essa sua douta Minuta de Acórd.o, cumpre decidir agora do recurso
sub judice, nos termos constantes do presente acórd.o definitivo, lavrado
pelo primeiro dos Juízes-Adjuntos.
II – DOS FACTOS
Com pertinência à solu..o do recurso, é de coligir dos autos os
seguintes elementos:
Em 18 de Julho de 2003, o Autor assinou uma declara..o
dactilografada em chinês (com respectiva tradu..o portuguesa também
dactilografada no mesmo texto original), e aceite no próprio dia pela Ré,
com seguinte teor traduzido para português:
<<Declara..o
Eu,(.....................................), titular do BIR no (...........................) recebi,
voluntariamente, a título de prémio de servi.o, a quantia de MOP$(..........................)
da STDM, referente ao pagamento de compensa..o extraordinária de eventuais
direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual
licen.a de maternidade e rescis.o por acordo do contrato de trabalho, decorrentes
do vínculo laboral com a STDM.
Mais declaro e entendo que, recebido o valor referido, nenhum outro direito
decorrente da rela..o de trabalho com a STDM subsiste e, por consequência,
nenhuma quantia é por mim exigível, por qualquer forma, à STDM, na medida em
que nenhuma das partes deve à outra qualquer compensa..o relativa ao vínculo
laboral.
[...]>> (cfr. o teor literal da mesma declara..o, a que alude a fl. 86 dos
autos), sendo certo que de acordo com o teor original em chinês dessa
declara..o, o “prémio de servi.o” é de MOP$29.790,10.
III – DO DIREITO
Juridicamente falando, a quest.o nuclear posta no recurso do Autor
prende-se com a indaga..o do sentido e alcance da declara..o escrita
ent.o por ele assinada e logo aceite pela Ré.
A este propósito, e tal como já se analisou mormente no acórd.o de 14
de Junho de 2007 deste Tribunal de Segunda Instancia, lavrado em chinês
no Processo n.° 258/2007 (em que se ocupou da mesmíssima quest.o
jurídica ante uma declara..o escrita com conteúdo materialmente idêntico
ao da declara..o ora em causa):
O Código Civil de Macau, no n.° 1 do seu art.° 854.°, disp.e que <<O
credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor>>.
Ora, em princípio, a dita declara..o ent.o emitida pelo Autor, uma vez
aceite pela Ré, já fez nascer um contrato de remiss.o de dívida previsto
neste preceito do Código Civil.
Entretanto, a cria..o do contrato n.o implica que o mesmo possa vir a
produzir necessariamente os efeitos pretendidos pelos respectivos
outorgantes, visto que tudo depende da existência, ou n.o, de outras
disposi..es legais obrigatórias que restrinjam ou limitam a liberdade
contratual (vide o art.° 399.°, n.° 1, do Código Civil).
Estando o presente processo sob a al.ada do Direito do Trabalho, há
que aplicar ao caso o Regime Jurídico das Rela..es de Trabalho de Macau,
consagrado no Decreto-Lei n.° 24/89/M, de 3 de Abril, e vigente
inclusivamente à data da assinatura da acima referida declara..o escrita do
Autor.
Segundo o art.° 6.° deste Decreto-Lei: <<S.o, em princípio, admitidos
todos os acordos ou conven..es estabelecidos entre os empregadores e
trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos ainda que
disponham de modo diferente do estabelecido na presente lei, desde que da sua
aplica..o n.o resultem condi..es de trabalho menos favoráveis para os
trabalhadores do que as que resultariam da aplica..o da lei>> (com sublinhado
ora colocado).
Sendo certo que as “condi..es de trabalho” de que se fala nesta norma
devem ser entendidas, de acordo com o conceito definido na alínea d) do
art.° 2.° do mesmo Decreto-Lei, como referentes a <<todo e qualquer direito,
dever ou circunstancia, relacionados com a conduta e actua..o dos empregadores e
dos trabalhadores, nas respectivas rela..es de trabalho, ou nos locais onde o
trabalho é prestado>> (com sublinhado agora posto).
Assim, estando o montante concreto do “prémio de servi.o” ent.o
declarado pelo Autor como recebido da Ré muito aquém da soma
indemnizatória considerada devida e reclamada na peti..o inicial, e
independentemente da procedência ou n.o do pedido do Autor, n.o se
deveria ter desconsiderado a norma expressa do art.° 6.° do dito
Decreto-Lei, nem o pensamento legislativo ao mesmo subjacente e ligado
às preocupa..es de proteger os interesses da parte trabalhadora (cfr. os
canones de hermenêutica jurídica plasmados no n.° 1 do art.° 8.° do
Código Civil), n.o se devendo, pois, ter julgado que a acima transcrita
declara..o do Autor era prova do já pagamento pela Ré das suas dívidas
para com o Autor, mesmo que essa declara..o do Autor tivesse sido
emitida após a cessa..o da rela..o de trabalho entre o Autor e a Ré.
Aliás, norma jurídica semelhante à do art.° 6.° do Decreto-Lei n.°
24/89/M, pode ser encontrada nas seguintes disposi..es do art.° 60.° do
Decreto-Lei n.° 40/95/M, de 14 de Agosto, definidor do regime aplicável à
repara..o dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doen.as
profissionais, também em prol da protec..o dos interesses da parte
trabalhadora:
<<1. é nula a conven..o contrária aos direitos ou às garantias conferidas no
presente diploma ou com eles incompatível.
2. S.o igualmente nulos os actos e contratos que visem a renúncia aos direitos
estabelecidos no presente diploma.>>
Por outras palavras, como o contrato de remiss.o de dívida em quest.o
nos presentes autos violou o princípio do “favor laboratoris” também
consagrado obrigatoriamente no art.° 6.° do Decreto-Lei n.° 24/89/M,
todos os eventuais créditos laborais legais do Autor sobre a Ré n.o podem
ficar extintos por efeito desse contrato, com o que há que cair por terra a
excep..o peremptória deduzida pela Ré com base nesse contrato.
Na verdade, este princípio do favor laboratoris, como um dos
derivados do princípio da protec..o do trabalhador informador do Direito
do Trabalho, para além de orientar o legislador na feitura das normas
juslaborais (sendo exemplo paradigmático disto o próprio disposto no art.o
5.o, n.o 1, e no art.o 6.o do Decreto-Lei n.o 24/89/M, de 3 de Abril), deve ser
tido pelo menos também como farol de interpreta..o da lei laboral, sob o
qual o intérprete-aplicador do direito deve escolher, na dúvida, o sentido
ou a solu..o que mais favorável se mostre aos trabalhadores no caso
considerado, em virtude do objectivo de protec..o do trabalhador que o
Direito do Trabalho visa prosseguir. (Neste sentido, e para maior
desenvolvimento no assunto, cfr. a Disserta..o de Doutoramento de
MARIA DO ROSáRIO PALMA RAMALHO: A Autonomia
Dogmática do Direito do Trabalho, in Colec..o Teses, Almedina,
Setembro de 2000, págs. 947 a 948 e 974 a 977, em especial, aliás já
materialmente citada no acórd.o de 25 de Julho de 2002, do Processo n.°
47/2002, deste Tribunal de Segunda Instancia).
Termos em que e independentemente de demais indaga..o por
desnecessária ou prejudicada, há que proceder o recurso sub judice,
embora com base em fundamentos jurídicos algo diversos dos invocados
pelo Autor recorrente.
IV – DECIS.O
Em sintonia com o acima exposto, acordam em conceder provimento
ao recurso do Autor, revogando, por conseguinte, a decis.o recorrida de
absolvi..o da Ré do pedido, e ordenando o conhecimento pelo Tribunal a
quo do pedido formulado na peti..o inicial, a n.o ser que haja outro
motivo legal a obstar a isto.
Custas do presente recurso pela Ré.
Macau, 28 de Fevereiro de 2008.
____________________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
____________________________
Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto)
____________________________
José Maria Dias Azedo
(Primeiro Juiz-Adjunto)
(Vencido, dando aqui como reproduzida a declara..o de voto que anexei ao
Ac. deste T.S.I. de 14.06.2007, tirado no Proc. n.o 258/2007, e cujo entendimento
assumi no projecto de acord.o que elaborei no sentido de se confirmar a
decis.o recorrida que absolveu a R. dos pedidos)